No dia das mulheres, conheça as histórias de quem está retomando os estudos no EJA

Quarta-feira, 07 de março de 2018, 19h. Missão: entrevistar mulheres que participam do EJA (Educação de Jovens e Adultos) na Escola Municipal Erik Andersen, com o objetivo de lembrar o dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
Aos poucos, as alunas vão chegando, já imaginando que o homem com uma caderneta na mão e olhar curioso é o responsável por fazer a reportagem. As professoras Márcia Valéria Agostinelli Santos e Silvana Jangarelli orientam, recepcionam e planejam a sistemática do trabalho. Márcia reclama que muitas faltaram por vergonha. Não é fácil lidar com a exposição, especialmente para algumas que, com certeza, já se acostumaram a viver à margem, longe dos olhares de quem antes de interpretar, julga.
Quem é professor sabe que uma sala de aula é um caldeirão. E um grupo que mistura faixas etárias, como o EJA, evidencia ainda mais esta pluralidade.
Mas, aos poucos, alguns traços em comum vão costurando a colcha de retalhos. A palavra que amarra o enredo é sacrifício. Em todas as histórias, situações de autonegação, de abandono dos estudos para cuidar dos pais, filhos ou dos maridos. Embora os avanços na luta pela igualdade de gêneros tenham sido significativos ao longo do século XX e neste início do século XXI, a discrepância ainda existe.
Mulheres dedicam 18,1 horas semanais aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos, o que representa 73% a mais do que os homens (10,5 horas semanais). Mulheres negras são as que mais se dedicam a essa tarefa, com 18,6 h/semana. Os números fazem parte das "Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil", divulgado pelo IBGE, nesta quarta (7), e referem-se ao ano de 2016.
Em todas elas, porém, um mundo. Tão iguais, tão diferentes...
Maria Martins Vieira Brandorff, por exemplo, resolveu aprender a ler e a estudar agora, aos 46 anos, depois que seu genro lhe deu um incentivo. Para ela, a vontade de fazer a carteira de motorista e sair do comodismo foram fatores preponderantes. Maria, que nasceu em Guaíra, teve uma infância pobre no Paraguai, onde chegou a estudar. Ainda jovem se casou. O marido, ciumento, a proibiu de estudar. Mas não de trabalhar. "Alguém precisava trabalhar em casa, né? Mas sair de casa, só assim. Não podia nem visitar a minha mãe sozinha", lembra. Há alguns anos, essa rotina mudou. Separada, Maria resolveu correr atrás do tempo perdido. "Antigamente a mulher vivia igual a uma presidiária. Agora, não. Agora a mulher precisa ter iniciativa. Ser mulher é ser guerreira", complementa.
Com um sorriso no rosto, Eva Martins Vieira já chega cativando. O sorriso não disfarça nada. É pura confiança. Aos 39 anos, Eva traz no sugestivo nome e na postura a segurança de quem se sabe mulher de nervos, músculos e ossos. Casada, três filhos, avó, Eva também luta contra o analfabetismo. E tem objetivos claros: fazer carteira de motorista, concluir o curso de cuidadora de idosos e ler a Bíblia.
A relação com as três metas ela já tem na prática. Sabe dirigir, é acompanhante de doentes e idosos e frequenta igrejas. Eva soube interpretar sua realidade analisando o que ela chama de "sinais". Quando ainda residia no Paraguai, ela engravidou. Sua filha nasceu doente, pouco mais de 1 kg. O instinto maternal a fez correr por hospitais de toda a região, até ser praticamente desacreditada por um médico em Guaíra. A fé costuma ser refúgio para quem não se conforma com os diagnósticos médicos. "Falei: Senhor, deixe minha filha viver. E ela viveu, teve convulsões até os 07 anos". Hoje, a filha de Eva tem 20 anos e nenhuma sequela. "Por isso quis devolver o que Deus me deu", completa.
No currículo de Eva, o trabalho de acompanhante de importantes personalidades, como a dona Geni, da Casa Primavera. "Gosto de pessoas mais velhas. Quando era pequena, sempre ficava próxima de gente idosa. Tenho paciência e muita responsabilidade", afirma.
Não saber ler, contudo, atrapalha. "Quando alguém me pede para assinar um documento e eu digo que não assino, percebo o susto das pessoas. Eu não falo nada, rio, mas no fundo a gente sente vergonha e tristeza. Mesmo assim, faço de tudo: cuido dos horários, aplico injeção, pego ônibus, já cansei de acompanhar muita gente que faz radio e quimio em Cascavel", revela.
Para Eva, ser mulher é ser guerreira. "Mulher é um trem cabuloso. Quando quer, consegue. O que posso dizer? Nunca perdi para um homem num arrancadão de mandioca. Nunca me achei menos. Mulher é mãe, avó, esposa e ainda trabalha", diz.
Na luta pela sobrevivência, nem sempre o mais forte parece o mais forte. A delicadeza pode se impor e as mulheres sabem disso há séculos. Ângela Maria Ferreira de Medeiros, 35 anos, é doméstica, casada há 19 anos e dona de uma fala calma, doce, quase angelical.
"Meu pai teve muitos filhos. Todos precisavam trabalhar na roça para garantir nossa vida, incluindo minha mãe. E eu ficava em casa cuidando do lar", relembra. Há alguns anos, seu marido, também de origem humilde, resolveu completar os estudos. Ângela o apoiou. Agora com os três filhos já mais crescidinhos, ela resolveu estudar também. "Sem estudo ninguém acha mais serviço. Nem de doméstica. Meu sonho é ser enfermeira. Ou trabalhar num asilo", projeta.
Extremamente preocupada com a família e com um notório olhar altruísta, Ângela é do tipo que coloca a família em primeiro lugar. Bom para a família, nem sempre fácil para ela. "Eu tô meio nervosa agora, por isso fico mexendo as mãos. Estou indo numa psicóloga porque meu pai morreu e fiquei muito abalada", conta, o sorriso maquiando a dor. Apesar de tudo, um sorriso otimista. Sorriso de quem sabe o que quer.
Agora mesmo alguma bomba deve estar caindo em algum ponto da Síria. Agora mesmo alguma criança deve estar pedindo dinheiro nas ruas de São Paulo. Implorando por comida em Guaíra. Não é fácil ser imigrante. Não é fácil ser estrangeiro em seu próprio país. Assim como também não é fácil sair do interior do Paraguai e buscar uma vida no Brasil, um país que anda mais intolerante ultimamente. A bela Graciela Quiñona, 20 anos, ignora as dificuldades e está há seis anos se virando por aqui. Diarista, a lacônica jovem aposta nos estudos e quer se formar em direito. Tímida, se esquiva das perguntas, mas não esconde sua vaidade. "O que eu penso das mulheres? São bonitas, esforçadas", resume.
"Do que mais gosto em ser mulher? A beleza", crava. Antes de sair, ela pergunta onde estarão as fotos da entrevista. Oferece o WhatSapp para a repórter fotográfica enviar as fotos. Eis a beleza de se sentir bela.
Aos 59 anos, Maria Setembrina Bernardo é do tipo que não falta às aulas. Viúva, em tratamento médico, mãe de 4 filhos, Dona Maria estudou até o sexto ano. Como a maioria das mulheres do campo, esteve ausente do mundo escolar por necessidade. Agora, no entanto, é dedicada a tudo o que lhe convém. Fez curso de garçonete, pratica aulas de violão e só não faz viola caipira porque o horário é incompatível.
"Nós nascemos das mulheres. Sem elas não estaríamos aqui. Hoje só posso agradecer pela vida. Meu pai foi um homem muito rígido, mas me deixou a educação. Meu marido não foi assim exatamente um bom marido, mas mesmo assim a gente perdoa", decreta.
A sabedoria está em mesmo em seguir em frente.
Navegar é preciso, em águas mansas ou turvas. Assim a pescadora Soeli Dias Nehring, 40 anos, toca a sua vida. Mãe de 3 filhos, moradora da Santa Clara, Soeli está frequentando os bancos escolares para aprender a ler e tirar a carteira de motorista. "As mulheres de hoje têm liberdades que antigamente não tinham. Mulheres são lutadoras, sofredoras e hoje podem ser felizes por terem a liberdade de escolha", opina.
Para ela, "mulheres são realistas".
Maria Luíza de Oliveira, costureira, 30 anos, concorda. E essa realidade de estudos e busca por uma vida melhor é compartilhada com seu marido, que também resolveu apostar na educação. "Meu sonho é ser professora de educação física", afirma. "Mulheres batalham pelos sonhos, são guerreiras, cuidam da casa, do marido, do filho. É preciso ter orgulho de ser mulher", diz.
Quinta-feira, 08 de março de 2018, 14h21. Saldo da noite anterior: todas as entrevistadas foram instigantes e a palavra mais usada foi "guerreira". E a luta continua, para muito além do dia 08 de março. As mulheres entrevistadas voltarão para suas rotinas cansativas, seus afazeres múltiplos. E assim a vida segue. "A vida é curta demais para ser pequena", escreveu um poeta.
Aliás, nesse mundo imenso, seguimos todos. Nova missão: refletir mais sobre a condição da mulher. Porque num dia como hoje, 8 de março, nada é um mar de rosas. Os dias não são feitos de flores. Dispenso as flores. O que é preciso demonstrar todo dia, constantemente, é o respeito. As mulheres, estas mulheres, merecem.
Texto Cristian Aguazo